"...As ruas pareciam tortas, estranhas. Naquela hora não havia lua, nem estrelas, nem esperança. A grande névoa tomara conta das ruas e dos pensamentos de Joe, que, mesmo sem entender o por quê, sentia o calor das pernas de Paula e o peso dos olhos de Déia naquele quarto. Andava esbarrando nos muros. Estava sendo seguido. Estava sendo perseguido, mas era por ele mesmo. No caminho de casa, as ruas lembravam a Cidade de Roma e toda sua barbárie. Era um contraste de riqueza e miséria e isso poderia ser facilmente inalado entre becos e esquinas. Era tudo muito frio. Era um misto de desespero e angústia. E o que eu quero ainda é um momento que dure uma vida - pensava. As folhas voavam como passos de danças medievais. As lágrimas começaram a escorrer e se perdiam no ar. Um grito de lamento ficou engasgado, e não pôde ser liberto, ele estava perto demais. E chapado demais. E três imagens se revezavam nos pensamentos de Joe. As pernas de Ana, os olhos de Déia e aquele velho maluco da praça. E, assim, caíram 1/3 dos anjos – disse como em um cochicho, e um riso engasgado. Entrou em sua casa, sem fazer barulho, e já no seu quarto começou mais uma vez a divagar no seu caderno de anotações, ao som baixinho de Beethoven.
A violência dança com Ludwig Von Beethoven. A nona sinfonia é a trilha do desprezo. Faz-me rir, Ares, faz-me rir! Faz-me rir como fizeste teus exércitos no fim das batalhas. Sobre o sangue de inocentes culpados e sob o céu púrpuro dos anjos que ainda não caíram – soltando um riso abafado. É, o som do Pink Floyd não é mais o mesmo. Será que estou blasfemando? Será que estou louco de tanto pensar? Será que estou ficando fraco? Será que seria melhor um copo de leite a uísque? – outro riso. Não, leite me dá asco. Na dúvida, é melhor me calar. Mas já não estou eu calado? E, mesmo assim, não seria melhor perguntar? Não são as respostas que fazem o mundo correr, são as dúvidas, meu caro. Sempre gostei de música clássica. Beethoven, Mozart. A progressão, a dinâmica. A arte da repetição sem repetir coisa alguma. As imagens que nos surgem à mente. Arvores falantes, enforcamentos, números voando, viro personagem de uma história sem fim e sem limites. E nem adianta querer fazer essa sua análise barata pra cima de mim. O céu do seu cérebro é o porão do meu. Aqui não há limites. Minha morada é obscura. Meus demônios estão longe dos seus alqueires. Compreende, meu caro? Porra! O que eu estou fazendo agora? Brigando comigo mesmo ou é com outro que discuto? Não sei, só sei que tinha razão, Pink Floyd não é mais o mesmo. Joe fechou o caderno, deitou e dormiu com a roupa que estava, despejando todas as suas preocupações e doenças naqueles poucos versos em seu caderno sujo e mal-cuidado. Estava agora em paz..."